Saturday, January 15, 2005

Espelho de mim mesmo

Não quis fazer da folha de papel o meu espelho. As letras que escrevia não tinham mais sabor a verdade do que a ficção que costumo ler nos horóscopos. Ou pelo menos gostava de pensar que assim o é. Ainda assim e sem saberes, insistias periodicamente em olhar por cima do ombro. Discretamente, como a educação obriga, procuravas duas palavras que fizessem sentido, um verbo que indicasse o caminho para a tua compreenção, um adjectivo que caracterizasse a tua percepção do texto.

Eu não parava de escrever por isso. Não parava quando te sentia aproximar mais. Abrandava somente! Deixava que o fluir das palavras fosse comprometido pelo teu respirar no meu ombro.

- O que escreves? - explodiste.
- Nada de especial - e fingia olhar para o infinito como se procurasse as palavras que me faltavam. Que fingia me faltar!

Agora, com o caderno em cima das pernas e com o fundo da caneta na boca, já percebias a deixa. E largavas disparada para a minha frente:

- É segredo?
- Por enquanto... - e fazias aquele ar de criança contrariada a quem não se dava o brinquedo. Respondi-te à letra: - Se te portares bem depois partilho contigo.

Remédio santo. Nem pestanejaste. Assumiste o compromisso silenciosamente e saiste rápido. Ficou só o teu perfume no ar. Procurei-o um pouco. E um pouco mais. Fechei os olhos por momentos e ainda te senti ali. Atrás de mim, o respirar no meu ombro, o sorriso nos lábios, o saber que me amavas como nunca tinha sido amado jamais.

Caneta em mão retomei o caderno à posição inicial. Refiz a leitura da obra produzida. Era ficção sem dúvida! Recuperação de tempos que existiam em noites de sonho tão somente. Coisas felizes que procurava oferecer a mim próprio, mas que caíam sempre no rol das divagações melancólicas.

Com a obtusidade de censor assumido, crítico de mim mesmo, passei um risco diagonal por todo o texto, libertando-me da escrita recente e desbravando caminho para uma nova divagação.

E agora, em campo aberto, respirando fundo, sempre contigo na mente, libertei de novo a caneta em acto de bravura e começei pela terceira vez:

"Não quis fazer da folha de papel o meu espelho...

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